quarta-feira, 27 de abril de 2011

Meu estranho envolvimento com uma "empresa de transportes"

Dois dias de folga na semana pareciam muito. Eu estava com energia de sobra e o feriado de páscoa parecia não reservar grandes programas. Pensando nos planos para os próximos tempos, decidi topar um trabalhinho extra. "Façamos dinheiro", pensei. Eu iria trabalhar com transporte de mudanças. Meu colega de apartamento havia recebido o convite mas não poderia aceitar. Eu mal sabia o que aquilo me reservava.

Ao meio-dia, cheguei caminhando a um hotel próximo à Estação Central. Uma chinesa de 1,5 metro de altura me aguardava. Nancy era o nome. Sorrisos e diálogos não eram o forte daquela mulher. Exceto as poucas palavras que ela dirigia a mim, toda a comunicação que ela mantinha era em chinês, tanto com o velho motorista do caminhão, quanto com os empregados do hotel, que pareciam conhecê-la bem. O clima não era muito favorável. O local sombrio aumentava a tensão. Eu gostaria de saber como seria o serviço, quanto receberia, quanto tempo trabalharia, qual time me acompanharia. Não estava, porém, suficientemente confortável para trocar palavras com aquela mulher. O caminhão estava a postos esperando para ser preenchido assim que o portão do estabelecimento fosse aberto. Quando o segurança abriu o estacionamento, eu me apavorei. O local estava lotado com pilhas de camas, colchões e TVs. O caminhão foi aberto.

- Pode começar - afirmou a chinesa.
- Ma... Mas e... Tudo isso? Tudo tudo? No caminhão? Quantos vão participar disso? Ou eu vou ter que carregar sozinho? - em uma sequência de perguntas, tentei tirar todas as dúvidas que faziam-me explodir de tensão tentando, contudo, demonstrar o mínimo possível da minha preocupação. E se fossem parte de uma máfia chinesa?  E se todo aquele material fosse recheado de contrabando, drogas, armas? E se eu recusasse o trabalho? Eu os deixaria na mão. O que fariam comigo? Melhor não desistir - pensei.
- Não se preocupe, você vai ter ajuda - respondeu apontando para traz de mim.

Virei 180 graus batendo com o peito em algo. Era quem me ajudaria. Olhei para baixo para enxergar e me desanimei. Meus músculos ficaram cansados no momento em que vi de onde viria minha ajuda, antes mesmo de levantar o primeiro colchão. O meu time era uma chinesa menor que a chefe. Ninguém mais. O hotel estava em reforma. Todos quartos receberiam móveis novos. Que tipo de empresa contrata uma pessoa daquelas pra levantar peso e fazer um trabalho que exigisse força como aquele? Tive de aceitar a situação. Melhor do que ser raptado e ter meus órgãos vendidos em espetos para consumo humano na China junto com cachorros, grilos e escorpiões. Talvez a academia que eu vinha fazendo me ajudasse no desafio. Bastava superar-me fisicamente para ter minha sobrevivência conquistada.

Deslocamos tudo para perto do caminhão com ajuda de um carrinho. Até então, ok. O pior, porém, ainda estava por vir: levantar tudo e acomodar dentro do veículo.

Não seria possível, o conteúdo parecia ser três vezes maior que o espaço existente no caminhão. 

 - Você tem que colocar tudo - afirmou a chefe em tom de ordem e olhos de ameaça, como que lendo meu pensamento. Não era uma ameaça explícita, havia um sorriso no seu rosto como quem diz: acho melhor você encontrar lugar aí dentro, senão...

Foi o bastante para eu ver o caminhão aumentar três vezes de tamanho. Nem senti o peso ao levantar cada cama, bastava lembrar daquele sorriso medonho. Primeiro os colchões, depois as camas e então as televisões. Encontrei espaço onde não havia. Só mais tarde passei a sentir o resultado de tanto esforço em cada músculo do meu corpo. Estava tudo dormente, ao menos não havia dor.

30 colchões, 12 camas, 10 televisões, 2,5 horas e 1,75 litro de suor. Consegui(mos) fechar a porta do caminhão após muitos empurrões. O pior já havia passado. Bastava despejar o conteúdo todo para fora do caminhão. Entramos no veículo. Uma longa viagem. Duas horas para ir e voltar.

Nada fazia o clima ficar tranquilo. Eu viajava por pontes e florestas macabras sentado entre dois chineses suados e fumantes compulsivos. O cheiro deles só não era pior que o odor dos cigarros que fumavam na cabine completamente fechada. Não havia brecha alguma na janela para arejar aqueles dois metros quadrados. Eu me controlava quieto esperando a hora de voltar para casa e tomar um banho.

Finalmente chegamos ao destino, um depósito de velho e abandonado. Não tive problemas lá, largamos todo o carregamento. Pude respirar antes de voltar à cabine e, então retornar para Sydney.

A Harbour Bridge! Finalmente, estávamos chegando perto de casa. Ela fez as contas do pagamento e me explicou como funcionava. Eu havia ficado mais de cinco horas em função do serviço. A chefe, no entanto, não contou pelas horas de deslocamento. Eu já havia feito uma estimativa de acordo com a minha expectativa, mas a realidade era decepcionante. Estávamos novamente na cidade e em segurança, o temor já havia passado. O que me incomodava naquele momento era a grana que ela oferecia. O problema foi ter coragem de reclamar, contestar ou apenas questionar o valor. Não era algo irrisório, mas abaixo do esperado e um tanto injusto pelo esforço ao qual eu havia me submetido.

Desci do caminhão e voltei rastejante, não só pelo cansaço ou pelo desânimo por receber menos do que o esperado, mas, principalmente, por me sentir omisso diante daquela chinesa. Preferi evitar contestar a quantia paga pensando em não criar estresse ou não perder a chance de ser chamado novamente. Atitude (ou falta de atitude) estúpida. Eu jamais aceitaria trabalhar novamente com eles! Afinal, com o jeito estranho daquelas pessoas, com a comunicação indecifrável que mantinham pelos celulares e com o peso suspeito de alguns materias carregados, a possibilidade do envolvimento daquela "empresa de transportes" com algum tipo de máfia chinesa não me parecia absurda.

sábado, 23 de abril de 2011

O aquário de Sydney

Segunda-feira. O início de semana seria com passeio pela escola. Eu e meus amigos decidimos fazer o nosso próprio programa e evitar a estranha escolha dos colegas de ir à praia no tempo impróprio para curtir areia e mar. Não faltam opções interessantes, andar pelo topo da Harbour Bridge, ir às Blue Mountains, conhecer um dos tantos zoológicos, visitar o centro olímpico... Escolhemos o Sydney Aquarium. Só havíamos recebido boas indicações sobre o local - apesar de virem do Leonel, biologo de nascença e de profissão, pareciam ser confiáveis. Eram.

Sol, fones de ouvido e quinze minutos caminhando de casa à Darling Harbour. Os 30 minutos aguardando pelos amigos atrasados não seriam tão agradáveis não fosse a trilha sonora e a vista de um dos cartões postais da cidade.
 

Meio-dia e trinta eles chegavam. A fila de espera era pequena, apesar do bom movimento. Estávamos atrás de uma dúzia de crianças barulhentas. Apenas a presença das duas jovens professoras fez que não nos importássemos com a bagunça e os gritos dos pequenos. Eu me estressaria, olharia feio, tentaria assustar para espantar as pestes que se jogavam de um lado para o outro e pisavam em nossos pés, mas mal olhávamos para as crianças. Talvez nenhum peixe ou crustáceo tenha sido tão admirado por nós quanto aquelas professoras de olhos claros. Morenas de olhos claros. Jovens mesmo, não mais de 21 anos. Pena nos perdermos delas logo na entrada... Ah, sim, o aquário! A entrada custou 23 dólares, já que apresentamos carteira de estudante.


No início nada surpreendia, vimos uns peixes presos em aquários de tamanho convencional. Uns coloridos, outros apenas grandes, cinzentos e bocudos. Interessante, mas nada demais. Estávamos mais preocupados em debater sobre a felicidade deles vivendo aprisionados.

- Ah, pelo menos esse aqui deve estar feliz - disse o Nick ao ver um peixe em um aquário de tamanho razoável tentando se convencer a não ficar com pena.

 

Finalmente um grande aquário, o do Ornitorrinco. Lemos todos dados fornecidos nas placas. A nossa expectativa de ver aquele bicho estranho era grande, afinal não é sempre que se vê algo parecido com o filho de uma lontra com um pato. O ambiente dele era ornamentado com troncos e plantas. Segundo as informações, o bicho costuma viver dentro de troncos, onde pode permanecer por longos períodos. Esperávamos que esse tempo no qual fica escondido não fosse maior que 30 minutos. Esperamos meia-hora e nada. Perdemos a paciência e seguimos o trajeto frustrados. Mais tarde voltaríamos para ver se teria saído.

O resto do passeio foi muito mais interessante. Esperávamos ver ao menos alguns tubarões, pois o aquário visto de fora não parece ser grande e imaginávamos. Entretanto, quanto mais andávamos pelos corredores, mais nos impressionávamos com o tamanho do local e com a diversidade de espécies expostas. Nem sentíamos mais pena pelo aprisionamento dos peixes, sapos, siris, polvos e estrelas-do-mar. Estávamos entretidos. No entanto, apenas quando encontrássemos uma grande escadaria iríamos nos divertir.

Havia uma grande piscina, como esperávamos. A diferença é que poderíamos andar dentro dela, em corredores envidraçados. Aquilo sim valeu o passeio. Durante mais de uma hora, observamos cara a cara tubarões, raias (ou arraias) e o grande dugong, animal típico da Austrália, o mas interessante que vimos, na minha opinião.

Dugong visto pelo corredor subaquático
 


 

Estávamos satisfeitos, porém não havíamos esquecido do ornitorrinco. Voltamos todo o percurso até aquele aquário. Mais dez minutos procurando e tentando enxergar dentro dos troncos sem sucesso. Insistimos, mas não havia jeito. Não nos importamos tanto, já que o passeio havia superado as expectativas. Realmente o dia tinha sido muito bom. Faltava apenas uma coisa para ele ser completo; era uma pena irmos para casa sem ver aquelas professoras novamente.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

A adaptação: entrando na cultura australiana

Todo dia, essa cidade me reserva novidades. Fico entusiasmado com cada curiosidade que conheço por aqui. O encanto por morar em Sydney aumenta a cada vez que me sinto mais em casa. É esse um dos meus maiores desejos: voltar para a minha cidade de origem sabendo que me senti em casa, que me adaptei a outra cultura. Estarei realizado pois um dos objetivos que tenho é conhecer o máximo possível, sobre qualquer lugar ou qualquer pessoa que eu conheça. Tenho uma vontade insaciável de entender o que tem ao meu redor e de explorar o máximo possível. Quanto mais peculiaridades observo e compreendo, mais interessado me torno e mais me sinto parte desse povo.

É preciso ter certa sensibilidade para observar o que se tem ao redor e para perceber essas diferenças. Tudo tem um motivo para ser distinto e um valor a ser reconhecido. O mendigo que "mora" na entrada do prédio ao lado não está ali em vão. Sim, aqui também há mendigos. Não tantos quanto no Brasil, é verdade, mas não é raridade cruzar por alguns deles quando se dá uma volta no centro da cidade. O que me instiga é o motivo por estarem ali. Sabe-se que o governo australiano oferece um apoio consideravelmente bom para os "homeless", o que acabaria com a necessidade de estarem naquela situação. Alguns visivelmente tem problemas mentais, mas e quanto aos demais?

City Ranger
Aqui é o "primeiro mundo", o que para muitos não é 100% vantajoso. A Austrália, ou pelo menos Sydney, é conhecida por ter regras para tudo. Regras e penalidades. Isso é motivo de reclamação para muita gente. Um pé sobre o banco do trem pode resultar em um bolso vazio. Atravessar a rua com o sinal fechado para os pedestres custa 68 dólares caso seja flagrado por um dos City Rangers, os fiscais de infrações da cidade. Outra grande surpresa que tive foi descobrir que o uso do capacete é obrigatório para quem quer circular de bicilceta. Qual seria o problema de atravessar a rua com o sinal vermelho, no meio da madrugada, quando visivelmente não há tráfego algum? Não é exagero ser obrigado a usar capacete para dar uma pedalada? Há quem reclame dessas restrições. No entanto, seria realmente um defeito possuir regras como essas? Talvez seja mais fácil simplesmente julgar como algo negativo. Quem chega vindo de outro local sempre achará mais cômodo reclamar da burocracia e da falta de bom-senso, mas não pode se esquecer de que está em outro contexto. Considero louvável a atitude de quem espera mais de um minuto para atravessar a rua sem reclamar. Também acho admirável a obediência de quem passeia de bicicleta usando a proteção exigida. Prefiro me adaptar ao que encontro por aqui e fazer parte do contexto em que me inseri a ir de encontro ao que é diferente. Essa realidade tem motivos para ser assim. Pelo meu ponto de vista, isso é questão de respeito, educação e organização, o que não é desvantagem pela minha interpretação.

Ciclista prevenido
Eu me impressionei na primeira semana de Austrália quando reparei nas escadas rolantes. Não pela tecnologia ou pela quantidade em que podem ser encontradas por aqui. O que me surpreendeu foi a atitude das pessoas. Como em qualquer outro lugar, uns querem subir rápido enquanto outros, sem pressa, aguardam até serem levados ao final. Para facilitar a vida de todos, um comportamento diferente (ao menos para mim) é adotado: quem não tem pressa fica no lado esquerdo da escada e dá passagem, à direita, para aqueles que querem chegar mais rapidamente. Isso acontece como se fosse regra.

Há quem reclame da falta de lixeiras em locais públicos. Eu ainda não havia percebido isso, quando me chamara a atenção, mas é verdade: frequentemente não encontramos lugares para depositar o lixo. Notei que esses locais são justamente os mais movimentados, o que seria uma contradição. Nenhuma estação de trem possuía lixeira, por exemplo. O motivo? Risco de ataques terroristas. As lixeiras são consideradas locais propícios para a instalação de artefatos. Estranho, a Austrália não parece ter grande envolvimento com esse tipo de coisa, mas para eles vale a precaução. Entretanto, parecem ter começado a implantar uma solução para isso em alguns desses locais.

As lixeiras transparentes
Há quem vá ao supermercado toda semana e recorra sempre ao caixa convencional. Por que não tentar o automático? Isso é algo a que não estamos acostumados, o que já é motivo suficiente para experimentarmos. Por que não pedir ajuda para que o funcionário ensine a usar aquele caixa diferente? Essa é a oportunidade de experimentar uma coisa que para nós é muitas vezes inédita e que faz parte do dia-a-dia daquele povo.

Adaptar-se às pequenas coisas faz que eu sinta meu cotidiano mais próximo ao dos australianos. Aí vem o conhecimento, quando há um envolvimento cultural, um entendimento do modo de vida e uma compreensão das atitudes do povo. Povo que espera mais de um minuto para atravessar a rua e que dá passagem a quem está com pressa na escada rolante. Há muito o que aprender com eles, basta aceitar as diferenças e querer compreender.

sábado, 2 de abril de 2011

A história de Seu Miguel e os objetivos longe de casa

Desde que começaram as atividades da churrascaria, Seu Miguel está sempre lá. Re-li-gi-o-sa-men-te. Não é um cliente comum. De segunda a sexta, o simpático velhinho chega com seu um metro e sessenta. Tradicionalmente vestindo chapéu e camisa brancos, senta-se de frente para o churrasqueiro antes do restaurante abrir. Às 17h20, dois medalhões de picanha preparados especialmente para ele - nem mal passados, nem muito secos - já estão prontos e cortados em finas tiras, da maneira a que só ele tem direito. Não come nada mais do restaurante, sempre os dois pedaços de picanha acompanhados pelas frutas que ele mesmo traz.

Seu Miguel tem 75 anos de idade. No Brasil, morou em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Veio a Sydney há mais de 40 anos em uma tentativa de fugir das turbulências do regime militar. Durante a década de 70, o governo australiano buscava aumentar a população do país visando um maior desenvolvimento. Aproveitando a conturbada situação política no Brasil, o próprio governo pagava a passagem para brasileiros interessados em imigrar. O retorno, porém, não estava incluso. Seu Miguel foi um desses brasileiros que tentaram reconstruir suas histórias na Austrália. Foram 40 dias em um navio, como ele mesmo conta. Viagem que mudaria sua vida radicalmente.

Hoje Seu Miguel vive sozinho. Os familiares ainda vivos se espalharam pelo Brasil e pelos Estados Unidos. O que resta são as histórias do Brasil e da antiga Sydney. Segundo ele, tudo era mais barato quando chegou. Não havia prédios nem todo o barulho dessa metrópole que tomou forma nas últimas décadas. Desembarcou falando um bom inglês. Conseguiu emprego na primeira semana, tamanha era a necessidade de mão-de-obra na época. Fez todo tipo de serviço, mas se fixou trabalhando na gráfica em que se aposentou.

Vendo-nos trabalhar, ele insiste para darmos valor a tudo o que façamos. Seu Miguel lembra do seu tempo em que juntava dinheiro, que tinha mais de um emprego e que crescia com experiências que davam muito mais do que um bom currículo, mas conhecimento e valores de vida.

- Jovens, vocês estão no caminho certo e um dia poderão fazer como eu: sentar com seus netos no colo e contar o que já experimentaram dessa vida. Vão perceber que fizeram as escolhas certas (mesmo que muitas vezes tenham sido arriscadas) e que atingiram os objetivos - afirmou com uma pontinha de nostalgia.

Seu Miguel tinha seu objetivo: reiniciar sua vida longe de casa. Ele diz ter retornado ao país de origem em algumas oportunidades para rever familiares, mas afirma que nunca pensou em voltar a morar por lá. Eu, como todos que buscam essa experiência, tenho minhas metas. Completando hoje três meses desde que cheguei, estou decidido a prorrogar minha volta. Espero que no final do ano eu perceba ter alcançado cada um de meus objetivos iniciais.